Agosto 2017 - page 42

Agosto / 2017 - nº 123
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Nicolinha
C
onto
Aos dez anos de idade Nicolinha já era um menino forte e
passava as manhãs trabalhando com seus pais nas feiras-livres
da cidade; e, à tarde, frequentava o grupo escolar. Eram os anos
1960, e a tensão política pairava no ar. As notícias indicavam
uma possível ruptura institucional. O povo havia ido às ruas
pedindo o restabelecimento da ordem. Para Nicolinha, no en-
tanto, tudo o que acontecia soava como algo muito distante, o
que lhe importava mesmo era poder ajudar aos seus pais fa-
zendo o seu melhor no atendimento dos fregueses e estudar.
Apesar da pouca idade, já assimilara os valores respeitáveis
com que seu pai lhe orientava: honestidade, dignidade e leal-
dade. Nada era mais importante que ser reconhecido por sua
honestidade, dizia sempre o seu pai.
Uma das feiras que a família trabalhava ficava nas proxi-
midades da Avenida Amador Bueno da Veiga, no Bairro da Pe-
nha. A barraca da família era muito conhecida no bairro, tinha
os melhores tomates, os melhores legumes e, a balança mais
precisa que se tinha numa feira-livre. Ninguém duvidava do
peso que ela apresentava.
Certa feita, Tereza, uma velha espanhola, chegou até a bar-
raca de Nicolinha e lhe pediu que conferisse o peso do filé de
pescada que havia comprado na barrada de peixe do português
Amaro. Nicolinha sem pestanejar colocou o pacote na sua ba-
lança e o que era para ser um quilo, na verdade, se mostrou em
setecentos e cinquenta gramas. Tereza ficou fula de raiva e, in-
dignada, voltou para a barraca de Amaro para tirar satisfações.
Como boa espanhola fez o devido escândalo na barraca
do peixe e, o velho português, mesmo sem razão, ainda ten-
tou justificar a diferença do peso, afirmando com seu sotaque
carregado que havia entendido que Tereza pedira setecentos
e cinquenta gramas e não um quilo de filé de pescada. Tereza
retrucou dizendo que foi muito clara ao pedir um quilo e que
não adiantava a Amaro se fazer de desentendido. O feirante
sem ter o que fazer acrescentou mais quatro pedaços de filé ao
pacote, o que era mais do que a diferença de peso apresentada.
Superada a crise, Tereza, ainda indignada e com o peso do
produto corrigido ao seu favor virou as costas e deixou Ama-
ro falando sozinho. Ele correu até ela e perguntou quem lhe
houvera afirmado da existência da diferença no peso; e, ela
respondeu que fora o Nicolinha, e se foi. O velho português
ficou mordido da vida. Sabia que a barraca do pai do Nicoli-
nha era a mais correta da feira, nunca ouvira falar que em al-
gum momento pesou alguma coisa para levar vantagem sobre
o freguês. Sem pestanejar, avisou seus
funcionários que iria ter uma palavrinha
com o Nicolinha e saiu pisando firme
de sua barraca.
Nicolinha e seus pais estavam vendendo seus legumes e
tomates quando surgiu à sua frente, vermelho de raiva, o portu-
guês Amaro. Na hora o menino entendeu o que aconteceu e o
que estava por acontecer. O pai de Nicolinha que o tinha visto
conferir o peso do peixe de dona Tereza ficou a observar. Me-
nino, você não deveria se intrometer nos negócios dos outros;
e, além do mais não deveria ter falado da diferença de peso
no peixe da velha Tereza, disse o velho português. Nicolinha,
do alto de toda a sua experiência de dez anos de idade, olhou
nos olhos do português e disse: seu Amaro, não fui eu que me
intrometi em seus negócios, dona Tereza veio até aqui e pediu
que eu pesasse o peixe; coloquei o pacote no prato e ela viu
o quanto marcou, não precisei dizer nada. Na verdade, quem
deveria cuidar melhor dos negócios é o senhor porque se conti-
nuar assim perderá a freguesia para o Shigueo.
O velho português ficou ainda mais vermelho de raiva e
olhou para o pai do menino dizendo, o senhor não vai dizer
nada sobre a petulância desse gajo? Rindo e todo orgulhoso do
filho, o pai de Nicolinha olhou bem para o português e disse,
Amaro, você veio tirar satisfações com uma criança e vem fa-
lar para mim de petulância?! Acho que você deveria seguir o
conselho dele e cuidar melhor dos seus negócios por que a ja-
ponesada está chegando forte nas feiras com os peixes; e, agora
acho que o assunto terminou, temos muito o que fazer ainda na
feira. Virou as costas para Amaro e foi atender a uma cliente
que havia pego uma bacia de chuchus.
O velho português vendo que não tinha chances de vencer
a discussão voltou para sua barraca de peixes. Chegando nela,
olhou para a barraca do Shigueo e, realmente, ficou preocupa-
do com a concorrência.
Na barraca de Nicolinha o trabalho seguiu tranquilo até o
final da feira. Seu pai conferiu a féria do dia, pagou os dois
funcionários que os ajudavam na barraca, desmontaram tudo,
colocaram as lonas, as hastes, as travas e as caixas vazias e com
produtos na carroceria do caminhão e seguiram para casa.
Na cabine o pai dirigia, a mãe sentou-se à janela e Nicolinha
entre os dois. Seu pai não falava muito, mas, naquele dia, ele
dirigiu um bom espaço abraçando seu filho com o braço direito
enquanto conduzia o caminhão apenas com a mão esquerda ao
volante. O pai estava muito orgulhoso de seu filho, um menino
de dez anos de idade muito mais homem que muitos adultos; e,
Nicolinha estava muito feliz por ter mostrado ao pai que estava
aprendendo os verdadeiros valores da vida.
O velho Amaro continuou vendendo seus produtos com di-
ferença no peso, mas não tanto para não ficar muito evidente aos
fregueses. A barraca do Shigueo ampliou-se e, ele acabou abrin-
do algumas peixarias na cidade. Nicolinha cresceu, se casou e
teve filhos. Nunca esqueceu os valores ensinados por seus pais
e, enquanto pudesse os continuaria a transmitir aos seus filhos.
Roberto de Jesus Moretti
• Bacharel em Direito pela Universidade
de São Paulo, Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública.
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