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Março / 2018 - nº 130
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C
onto
Passava das duas horas da manhã quando o celular de Solange
começou a tocar insistentemente. Ainda absorvida pelo sono passou
a mão pelo lado esquerdo da cama e viu que seu marido não estava
deitado..., abriu os olhos imediatamente! Num breve instante o frio
lhe percorreu a espinha e um aperto em seu coração tomou lugar. Pe-
gou o celular e viu o nome de Carlos no chamador, um alívio..., era
seu marido. Apertou a tecla verde para aceitar a ligação e, colocando
o aparelho no ouvido, foi logo dizendo,
Carlos meu querido, o que
aconteceu; você nunca me liga quando está de serviço...?!?!
Do ou-
tro lado da linha, uma voz masculina, cansada e fraca, respondeu,
olá meu amor, senti saudades de você... Solange interpelou, deixa
de bobagem; você não é chegado a romantismos e ainda por cima
a essa hora da madrugada.... Puxando o ar com dificuldades Carlos
explicou o que acontecia,
-- Olha Solange, preciso que você mantenha a calma e seja for-
te.... (tosse)
-- O que aconteceu Carlos, porque você está tossindo?
-- Amor, eu e o Aparecido fomos acionados para atender uma
grávida em trabalho de parto na favela do “Jacaré rabudo”... Che-
gamos na entrada indicada e um garoto nos esperava para levar até
o barraco da mulher. Andamos um pouco até chegar num espaço
mais largo com umas três saídas além da que nós viemos, cercado
de alguns barracos, o garoto saiu correndo e, então... (tosse)
-- Então o quê, homem, então o quê??? A voz de Solange tremia.
Sabia que algo não estava certo, seu marido não faria esse tipo de li-
gação e contaria esses detalhes se algo grave não tivesse acontecido...
-- Amor..., então os tiros começaram.... Uma armadilha.... Não
havia grávida alguma... Eu e o Aparecido fomos atingidos, sacamos
nossas armas e atiramos para os locais aonde víamos brilhos de ar-
mas disparando e corremos para uma das saídas, só que nos enfiamos
ainda mais no interior da favela e os bandidos correndo atrás de nós....
Nesse momento Solange gelou, não podia acreditar no que aca-
bara de ouvir seu marido dizer; as palavras “armadilha”, “tiros” e
“atingidos” ecoavam em sua mente; ao que ela disse, mas vocês saí-
ram da favela, caso contrário você não estaria me ligando...
-- Solange, não conseguimos sair ainda... O Aparecido conseguiu
falar com o COPOM pelo rádio portátil mas, não sabemos quanto
tempo o reforço demorará à chegar... Nós corremos... caímos num
barranco e batemos as costas num barraco de alvenaria semicons-
truído e agora estamos do lado de dentro esperando o apoio ou os
“malditos” nos encontrarem. Há muita movimentação lá fora...
-- CARLOS!! VOCÊS TÊM DE SAIR DAÍ!!! Gritou Solange,
desabando a chorar.
-- Amor, por favor mantenha a calma, não adianta se desespe-
rar... quando a situação não tem remédio, remediada está... (tosse)...
na verdade... Solange, soluçando, interrompeu,
-- Como manter a calma enquanto você está aí em perigo...
como vamos ficar eu e nossa filha...você...Carlos, por favor, diz que
é uma brincadeira de mal gosto....
-- Amor, não é brincadeira não... peço novamente que seja for-
te.... O Aparecido foi atingido duas vezes no colete e eu uma; porém,
outro projétil atingiu bem na divisa, no baixo abdómen e depois
que caímos percebi que a bala se moveu e deve ter atingido minha
coluna, estou deixando de sentir as pernas....
-- Carlos, meu amor... você tem de sair daí... Sua voz trêmula e
olhos encharcados demonstravam seu completo desespero...
-- Solange, já fazem mais de cinco minutos que fui atingido e
acho que não demorará muito..., mesmo que o apoio chegasse ago-
ra, nada poderia ser feito...
-- Como você pode dizer isto homem de Deus!!
-- Você esqueceu que fiz quase dois anos de enfermagem antes
de deixar o curso por causa do salário... eu sei o que um ferimento
em determinadas regiões do abdómen fazem à pessoa... Apenas me
ouça... Quero lhe pedir perdão....
Solange retomou o controle e indagou,
-- Perdão pelo que Car-
los?!?!
-- Perdão por não ter lhe dado a atenção que devia, perdão por
ter lhe deixado em tantos dias e noites de folga para fazer “bico”
para o nosso bem-estar material, perdão por estragar nossas férias
indo trabalhar enquanto vocês ficavam sozinhas na praia na casa
de seus pais; perdão por chegar em casa cansado altas horas da
noite e não poder ver o sorriso de nossa princesa..., perdão por não
dar atenção aos rabiscos que nossa menina fazia dizendo que tinha
desenhado o papai, a mamãe e a “nina”; perdão por tantas coisas
que deixei de fazer e, que agora não farei mais... Perdão por não
entender que, na verdade, o que valia mesmo era estar com vocês,
olhar seus rostos, seus sorrisos, abraça-las, enxugar suas lágrimas,
ver a “nina” crescer... e..., somente agora, percebo...
-- Carlos não fale assim, não há nada que perdoar, você estava
fazendo o que achava ser o melhor para nossa família... Com nossos
salários baixos e os custos de se criar uma filha, não se poderia espe-
rar nada diferente de um policial-militar dedicado como você...
-- Sabe Solange, agora me veio um pensamento engraçado: como
policiais e professores se casam! Não é verdade! Eu, um PM e você
uma Professora do Estado! Quantos outros casais nós conhecemos as-
sim... Até o Aparecido está paquerando uma professora... (risos e tosse)
-- Você tem razão Carlos, mas, por favor ache um jeito de sair
daí...
E, novamente, desabou a chorar...
Encostado na parede oposta à entrada do barraco semiconstruído
onde se abrigavam, sem poder mexer as pernas, Carlos observava
seu parceiroAparecido olhando o ambiente. Ouviram quando alguns
bandidos passaram direto pela parte de cima do barranco sem se
aterem ao lugar onde os policiais se escondiam. Passados alguns
minutos, durante a conversa entre Carlos e sua mulher, os agentes
ouviram sirenes chegando nas proximidades da favela. Carlos sen-
tiu um alívio por Aparecido, pois, sabia que quanto à sua situação
nada poderia ser feito, amor, disse Carlos ao celular, estou ouvindo
sirenes, o apoio chegou, tudo dará certo. Na verdade, ele mentia
Um celular por testemunha
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